Um dos vídeos mais famosos da
internet é o vídeo Nós estamos aqui: O
Pálido ponto azul, que é uma montagem
de fotografias, cenas de diversos filmes e a leitura de alguns trechos de Você está aqui, primeiro capítulo do
fantástico livro Pálido Ponto Azul
(Companhia das Letras, 1996), do cientista e divulgador da ciência Carl
Sagan. Neste capítulo do livro, Sagan fala um pouco dos bastidores da NASA durante
os preparativos para a série de 60 fotografias que a sonda espacial Voyager 1
tirou dos planetas do sistema solar a distância de cerca de 6 bilhões de quilômetros
da terra, que ficou conhecida como “Foto de Família”. Falecido em 1996, ele é o
autor dos livros de divulgação científica O
Mundo Assombrado Pelos Demônios, Os Dragões do Éden, O Romance da Ciência, Bilhões
e Bilhões, Cosmos, Pálido Ponto Azul, Cérebro de Broca, Variedades da Experiência
Científica, do romance de ficção científica Contato, que virou o filme de mesmo nome estrelando Jodie Foster, e
do sensacional documentário Cosmos.
Terra vista da órbita de Saturno pela sonda Cassini |
No belíssimo vídeo, temos uma
lição de humildade para todos os seres humanos sobre nosso verdadeiro lugar no
universo e como nossas preocupações parecem pequenas sob a perspectiva cósmica.
Sempre me entristeceu muito olhar para um planisfério ou para um globo
terrestre, com as divisões políticas em países formando uma colcha de retalhos coloridos
sobre os continentes do planeta, e que parece tão sem sentido quando observamos
uma fotografia da terra vista do espaço. Estas divisões parecem ainda mais
absurdas quando vemos uma fotografia da Terra a bilhões de quilômetros, de onde
ela é apenas um pontinho azul que mal percebemos. Ver as coisas sobre esta
perspectiva é cada vez mais importante nos dias de hoje, onde problemas ambientais
ultrapassam as fronteiras e põem em risco o futuro da vida no planeta,
incluindo todos os seres humanos, seja de que nação pertencerem.
Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa
casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem
já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas
vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras
religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores,
heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses,
jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores
e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”,
“lideres supremos”, todos os santos e pecadores da história da nossa espécie,
ali – num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A viagem das sondas Voyager 1 e 2
foi um dos projetos mais ambiciosos e bem sucedidos da NASA, comparável ao pouso
das naves Apolo na Lua e ao telescópio Espacial Hubble. Aproveitando-se de um
raro alinhamento planetário, estas duas naves visitaram todos os planetas do
sistema solar exterior, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e suas dezenas de luas,
e enviam dados dos limites do Sistema Solar até hoje, mais de 30 anos após o
lançamento. Segue abaixo o capítulo inteiro do livro, com a adição de algumas
fotografias:
VOCÊ ESTA AQUI
A Terra inteira é somente um ponto, e o lugar de nossa habitação, apenas
um canto minúsculo desse ponto.
MARCO AURÉLIO, IMPERADOR ROMANO, MEDITAÇÕES, LIVRO 4 (170 d.c.)
Como os astrônomos são unânimes em explicar, o circuito de toda a Terra,
que nos parece infinito comparado com a grandeza do Universo, assemelha-se a um
ponto diminuto.
AMMIANUS MARCELLINUS (330-395 d.c.)
O ÚLTIMO GRANDE HISTORIADOR ROMANO EM A CRÔNICA DOS ACONTECIMENTOS.
A nave espacial estava muito distante de
casa, além da órbita do planeta mais afastado e bem acima do plano da eclíptica
– que é uma superfície plana imaginária que podemos visualizar como uma pista
de corrida onde as órbitas dos planetas ficam principalmente confinadas. A nave
afastava-se aceleradamente do Sol a 60 mil quilômetros por hora. Mas, no início
de fevereiro de 1990, foi alcançada por uma mensagem urgente da Terra.
Obedientemente, redirecionou suas câmeras
para os já distantes planetas. Girando sua plataforma de varredura de um ponto
a outro no espaço, tirou sessenta fotografias e as armazenou sob forma digital
em seu gravador. Depois, lentamente, em março, abril e maio, radiotransmitiu os
dados pra a Terra. Cada imagem era composta de 640 mil elementos individuais
(“pixels"), como os pontos em uma fotografia de jornal transmitida por
telégrafo ou em uma pintura pontilhista. A nave espacial estava a 6 bilhões de
quilômetros da Terra, tão distante que cada pixel levava cinco horas e meia,
viajando à velocidade da luz, para chegar até nós. As fotos poderiam ter sido enviadas
mais cedo, mas os grandes radiotelescópios na Califórnia, na Espanha e na Austrália,
que recebem esses sussurros da orla do Sistema Solar, tinham responsabilidades
para com outras naves que transitam pelo mar espacial – entre elas, Magellan,
rumo a Vênus, e Galileo, em sua travessia tortuosa por Júpiter.
A Voyager 1 estava tão acima do plano da
eclíptica porque, em 1981, passara muito perto de Titã, a lua gigantesca de
Saturno. Sua nave irmã, a Voyager 2, fora enviada numa trajetória diferente
dentro do plano da eclíptica e, por isso, pudera realizar as célebres
explorações de Urano e Netuno. Os dois robôs Voyager exploraram quatro planetas
e quase sessenta luas. São triunfos da engenharia humana e uma das glórias do programa
espacial norte-americano. Ainda estarão nos livros de história, quando muitos outros
dados sobre nossa época já tiveram caído no esquecimento.
O funcionamento das Voyager só estava
garantido até o encontro com Saturno. Achei que seria uma boa idéia, logo
depois de Saturno, que elas lançassem um último olha para casa. Eu sabia que,
vista a partir de Saturno, a Terra pareceria demasiado pequena para que a
Voyager distinguisse algum detalhe. O nosso planeta seria apenas um ponto de
luz, um pixel solitário, mal distinguível dos muitos outros pontos de luz que a
Voyager podia divisar, planetas próximos e sóis distantes. Mas, justamente por causa
da obscuridade de nosso mundo assim revelado, valeria a pena ter a fotografia.
Os marinheiros fizeram um levantamento
meticuloso das costas litorâneas dos continentes. Os geógrafos traduziram essas
descobertas em mapas e globos. Fotografias de pequenos fragmentos da Terra
foram tiradas, primeiro por balões e aviões, depois por foguetes em vôos
balísticos curtos e, finalmente, por naves espaciais em órbita – gerando uma
perspectiva similar à que obtemos quando posicionamos o globo ocular uns três
centímetros acima de uma grande esfera. Embora quase todo mundo aprenda que a
Terra é um globo ao qual estamos, de certa forma, presos pela gravidade, a realidade
de nossa circunstância só começou, de fato, a penetrar em nosso entendimento com
a famosa fotografia Apollo 17 na última viagem de seres humanos à Lua.
Ela se tornou uma espécie de ícone da nossa
era. Ali está a Antártida, que norte-americanos e europeus consideram a parte
extrema da Terra, e toda a África estirando-se acima dela: vemos a Etiópia, a
Tanzânia e o Quênia, onde viveram os primeiros seres humanos. No alto, à
direita, estão a Arábia Saudita e o que os europeus chamam Oriente Médio. Mal e
mal espiando no topo, está o mar Mediterrâneo, ao redor do qual surgiu uma
parte tão grande de nossa civilização global. Podemos distinguir o azul do
oceano, o amarelo-ocre do Saara e do deserto árabe, o castanho-esverdeado da floresta
e dos prados.
Não há, entretanto, sinal de seres humanos
na fotografia, nem de nosso reelaboração da superfície da Terra, nem de nossas
máquinas, nem de nós mesmos: somos demasiado pequenos e nossa política é demasiado
fraca para sermos vistos por uma nave espacial entre a Terra e a Lua. Desse
ponto de observação, nossa obsessão com o nacionalismo não aparece em lugar
algum. As fotografias Apollo da Terra inteira transmitiram às multidões algo
bem conhecidos dos astrônomos: na escala de mundos – para não falar da escala
de estrelas ou galáxias – os seres humanos são insignificantes, uma película
fina de vida sobre um bloco obscuro e solitário de rocha e metal.
Parecia-me que outra fotografia da Terra,
tirada de um ponto de centenas de milhares de vezes mais distantes, poderia
ajudar no processo continuo de revelar-nos nossa verdadeira circunstância e
condição. Os cientistas e filósofos da Antigüidade clássica tinham compreendido
muito bem que a Terra era um simples ponto num vasto cosmo circundante, mas
ninguém jamais a vira nessa condição. Era a nossa primeira oportunidade (e
também a última em várias décadas).
Muitos membros do Projeto Voyage da NASA
deram o seu apoio. Vista a partir da orla do Sistema Solar, porém, a Terra fica
muito perto do Sol, como uma mariposa enfeitiçada ao voar ao redor de uma
chama. Apontaríamos a câmera para tão perto do Sol, a ponto de correr o risco
de queimar o sistema vidicon da nave espacial? Não seria melhor esperar ate que
fossem obtidas todas as imagens cientificas de Urano e Netuno, se a nave
espacial chegasse a durar tanto tempo?
E assim, esperamos – o que foi bom – de
1981, em Saturno, a 1986, em Urano, e a 1989, quando as duas naves espaciais já
tinham passado das órbitas de Netuno e Plutão. Por fim, chegou a hora. Havia,
porém, algumas calibrações instrumentais a serem feitas primeiro, e esperamos
um pouco mais. Embora a nave espacial estivesse nos lugares certos, os
instrumentos ainda funcionassem maravilhosamente, e não houvesse outras
fotografias a serem tiradas, alguns membros do projeto se opuseram. Não era
ciência, diziam. Descobrimos, então, que, numa NASA em dificuldades financeiras,
os técnicos que projetavam e transmitiam os comandos de rádio para a Voyager
estavam para ser dispensados imediatamente ou transferidos para outras tarefas.
Se quiséssemos tirar a fotografia, tinha de ser naquele momento. No último minuto
– na verdade, no meio do encontro da Voyager 2 com Netuno – o então administrador
da NASA, contra-almirante Richard Truly, interveio e garantiu que as imagens
fossem obtidas. Os cientistas espaciais Candy Hansen, do Laboratório de Propulsão
a Jato da NASA (JPL), e Carolyn Porco, da Universidade do Arizona, projetaram a
seqüência de comandos e calcularam os tempos de exposição da câmera.
Assim, aqui estão elas – um mosaico de
quadrados dispostos sobre os planetas e uma coleção heterogênea de estrelas
mais distantes ao fundo. Não só conseguimos fotografar a Terra, mas também
outros cinco dos nove planetas conhecidos que giram em torno do Sol. No brilho
deste, perdeu-se Mercúrio, o mais próximo. Marte e Plutão eram demasiado
distantes. Urano e Netuno são tão indistintos que, para registrar a sua presença,
foram necessárias longas exposições; conseqüentemente, devido ao movimento da
nave espacial, suas imagens não ficaram nítidas. Essa seria a imagem eu os
planetas ofereceriam a uma espaçonave alienígena que se aproximasse do Sistema Solar
depois de uma longa viagem interestelar.
A partir dessa distância, os planetas
parecem apenas pontos de luz, nítidos ou não – mesmo através do telescópio de
alta resolução a bordo da Voyager. São como os planetas vistos a olho nu da
superfície da Terra; pontos luminosos, mais brilhantes que a maioria das
estrelas. Durante um período de meses, a Terra, como os outros planetas, pareceria
mover-se entre as estrelas. Olhando simplesmente para um desses pontos, não se
pode dizer como ele é, o que existe na sua superfície, qual foi seu passado e
se, neste momento em particular, alguém vive ali.
Devido ao reflexo da luz do Sol na nave
espacial, a Terra parece estar pousada num raio de luz, como se nosso pequeno
mundo tivesse um significado especial. Mas é apenas um acidente de geometria e
óptica. O Sol emite sua radiação eqüitativamente em todas as direções. Se a
foto tivesse sido tirada um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, nenhum raio
de sol teria dado mais luz à Terra.
E por que essa cor cerúlea? O azul provém em
parte do mar, em parte do céu. Embora transparente, a água em copo absorve um
pouco mais de luz vermelha que de azul. Quando se tem dezenas de metros da
substância ou mais, a luz vermelha é totalmente absorvida e o que se reflete no
espaço é sobretudo o azul. Da mesma forma, o ar parece perfeitamente
transparente num pequeno campo de visão. Ainda assim – algo que Leonardo da
Vinci era mestre em pintar – quando mais distante o objeto, mas azul ele parece
ser. Por quê? O ar dispersa muito melhora a luz azul do que a vermelha. O matiz
azulado, portando, provém da atmosfera espessa, mas transparente, da Terra e de
seus oceanos profundos e líquidos. E o branco? Em um dia normal, a Terra tem quase
metade de sua superfície coberta por nuvens brancas de água.
Nós podemos explicar o azul-pálido desse
pequeno mundo porque conhecemos muito bem. Se um cientista extraterrestre, recém
chegado às imediações do nosso Sistema Solar, poderia fidedignamente inferir
oceanos, nuvens e uma atmosfera espessa, já não é tão certo. Netuno, por
exemplo, é azul, mas por razões inteiramente diferentes. Desse ponto de observação,
a Terra talvez não apresentasse nenhum interesse especial.
Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem
de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos
aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres
humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura
de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas
econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e
destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais
e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de
moral, políticos corruptos, “superastros”, “lideres supremos”, todos os santos
e pecadores da história da nossa espécie, ali – num grão de poeira suspenso num
raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma
imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os
generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores
momentâneos de uma fração desse ponto. Pesem nas crueldades infinitas cometidas
pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis
de algum outro canto, em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca
destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância,
a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo é posto em
dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na
grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, em meio a toda essa
imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que
nos salve de nós mesmos.
A Terra é, até agora, o único mundo
conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos no futuro
próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Goste-se ou não,
no momento a Terra é o nosso posto.
Tem-se dito que a astronomia é uma
experiência que forma o caráter e ensina humildade. Talvez não exista melhor
comprovação da loucura das vaidades humanas do que esta distante imagem de
nosso mundo minúsculo. Para min, ela sublinha a responsabilidade de nos
relacionarmos mais bondosamente uns com os outros e de preservarmos e amarmos o
pálido ponto azul, o único lar que conhecemos.
Planetas Vênus, Terra e Marte vistos da órbita de Saturno pela sonda Cassini. |
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