O Bom Soldado (Alfaguarra/Objetiva, 2009), escrito pelo britânico
Ford Madox Ford é considerado um dos maiores clássicos da literatura do século
XX. O livro é mais conhecido pela inovação do chamado “narrador não confiável”,
onde a história é narrada em primeira pessoa por um dos personagens e este faz
uma descrição dos outros personagens que vai mudando no decorrer dos capítulos,
causando uma sensação de estranheza e curiosidade que vai prendendo a atenção
do leitor.
Na história conhecemos o narrador
John Dowell e sua esposa Florence, americanos ricos que fazem uma viagem à
França, onde conhecem o ex-Capitão do Exército Britânico Edward Ashburnham (o bom soldado do título) e
sua esposa Leonora, um perfeito cavalheiro britânico casado com a perfeita dama
da sociedade, o casal modelo da Europa tradicional e o casal modelo da América
moderna e rica. Conforme a narrativa avança, descobrimos que o perfeito casal
britânico não é tão perfeito assim e que Edward é na verdade um homem
mulherengo e viciado em jogos, afundando em dívidas que ameaçam cada vez mais
seu patrimônio. Enquanto isso John percebe que seu casamento também não é o que
parece e que este quarteto guarda segredos que ele talvez preferisse não saber.
Ford Madox Ford |
Seria apenas mais uma história de
amor e traição se não fosse a maneira peculiar como é contada. No início o
narrador descreve Edward Ashburnham como um homem de moral inabalável e sua
esposa Leonora Ashburnham como uma verdadeira megera. No decorrer da história o
narrador nos causa estranhamento ao voltar diversas no tempo, recontar fatos
sob o ponto de vista de outros personagens, transformando Edward em um degenerado
e sua esposa em uma vítima infeliz, para logo em seguida, em uma nova
reviravolta narrativa, redimir todos de seus pecados. Outro personagem que tem
sua personalidade posta em dúvida pelo narrador é sua própria esposa, Florence
Dowell, cuja honestidade também se transforma de acordo com o capítulo, o que
começa a deixar em cheque nossa percepção sobre a versão da história do próprio
narrador em si.
Tenho consciência de que contei esta
história de um jeito muito desconexo, de forma que pode ser difícil para
qualquer um encontrar seu rumo em meio ao que pode ser uma espécie de
labirinto. Não pude evitar. Fiquei preso à minha idéia de estar em um chalé de
alta classe com um ouvinte silencioso, que escuta entre as rajadas de vento,
entre os ruídos do mar distante, a história como ela vem. E quando alguém
discute um caso, um longo e triste caso, vai para trás, vai para a frente. A
pessoa se lembra de pontos que havia esquecido e os explica com mais minúcias
quando reconhece que esqueceu de mencioná-los em seus devidos lugares e que, ao
omiti-los, podia ter dado uma falsa impressão. Eu me consolo a pensar que isto
é uma história real e que, afinal de contas, histórias reais são provavelmente
mais bem contadas da forma que a pessoa que conta a história a contaria. Elas
então parecem mais reais.
Vejo este livro como um alerta para
o fato de que nem sempre as aparências são um reflexo do que cada um guarda
dentro de si, e que às vezes guardamos desejos e segredos que seriam
reprováveis aos olhos da sociedade (que também sofre das mesmas falhas, diga-se
de passagem). A história dos casais Dowell e Ashburnham retrata as entranhas de
muitos casais em qualquer parte do mundo; pessoas vivendo sob as pressões
constantes e às vezes insuportáveis entre os compromissos assumidos aos olhos
da sociedade e desejos inconfessáveis. O resultado nestes casos quase sempre
varia entre uma vida infeliz de um casamento de aparências e uma vida secreta
de adultério que pode terminar em ruptura e escândalo. A eterna luta humana em
conciliar seus desejos com os padrões sociais em constante mudança.
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