segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke

Cartas a um jovem poeta (Editora Globo/ Biblioteca Azul, 2013), é uma coletânea de cartas escritas entre 1903 e 1908 pelo poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) ao aspirante a poeta Franz Xaver Kappus (1883-1966). O jovem Kappus passava por um período de dúvidas sobre sua vocação para a poesia, quando através de um velho professor em comum, conseguiu se corresponder com o grande poeta Rainer Maria Rilke. As cartas do grande poeta, mais do que lições sobre a arte poética, são lições que cada um de nós podemos tomar para nossas vidas, sobre a verdadeira vocação, arte, educação, amor, felicidade e o maravilhamento diante do grande mistério da existência. Alguns anos após a morte de Rilke, em 29 de dezembro de 1926 quando este encontrava-se internado em um sanatório, Kappus decidiu publicar as cartas em formato de livro, que se tornou a obra mais famosa do grande poeta. Franz Xaver Kappus lutou na Primeira Guerra Mundial e mais tarde se tornou compositor, romancista e roteirista de cinema, até morrer em 9 de outubro de 1966.
Rainer Maria Rilke
Esta edição caprichada contém também o longo poema A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão, com tradução da escritora e poeta brasileira Cecília Meireles, que também assina o Prefácio, e um Posfácio do grande romancista Robert Musil, escrito por ocasião da morte de Rainer Maria Rilke.
Segue abaixo a primeira carta enviada por Rilke para Kappus:






Paris, 17 de fevereiro de 1903


Prezadíssimo senhor,

SUA CARTA ALCANÇOU-ME APENAS HÁ POUCOS DIAS. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do qualquer outra coisa são as obras de arte – seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não tem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema “Minha alma”. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema “A Leopardi”, talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada tem ainda de próprio e independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os a outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um outro redator. Pois bem – usando da licença que me deu para aconselhá-lo -, peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: “Sou forçado a escrever?”. Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com essa necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde.
Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza em nenhum lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois dessa volta para dentro, desse ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Nesse caráter de origem está o seu critério – o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora este: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais ter o direito de fazê-lo.) Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que devo mais lhe dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.
Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horaceck; guardo por esse amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, deste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.
Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurarei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia,

Rainer Maria Rilke

Nenhum comentário:

Postar um comentário