Cartas a um jovem poeta (Editora Globo/ Biblioteca Azul, 2013), é
uma coletânea de cartas escritas entre 1903 e 1908 pelo poeta Rainer Maria
Rilke (1875-1926) ao aspirante a poeta Franz Xaver Kappus (1883-1966). O jovem
Kappus passava por um período de dúvidas sobre sua vocação para a poesia,
quando através de um velho professor em comum, conseguiu se corresponder com o
grande poeta Rainer Maria Rilke. As cartas do grande poeta, mais do que lições
sobre a arte poética, são lições que cada um de nós podemos tomar para nossas
vidas, sobre a verdadeira vocação, arte, educação, amor, felicidade e o
maravilhamento diante do grande mistério da existência. Alguns anos após a
morte de Rilke, em 29 de dezembro de 1926 quando este encontrava-se internado em
um sanatório, Kappus decidiu publicar as cartas em formato de livro, que se
tornou a obra mais famosa do grande poeta. Franz Xaver Kappus lutou na Primeira
Guerra Mundial e mais tarde se tornou compositor, romancista e roteirista de
cinema, até morrer em 9 de outubro de 1966.
Rainer Maria Rilke |
Esta edição caprichada contém
também o longo poema A canção de amor e
de morte do porta-estandarte Cristóvão, com tradução da escritora e poeta
brasileira Cecília Meireles, que também assina o Prefácio, e um Posfácio do grande
romancista Robert Musil, escrito por ocasião da morte de Rainer Maria Rilke.
Segue abaixo a primeira carta
enviada por Rilke para Kappus:
Paris, 17 de
fevereiro de 1903
Prezadíssimo senhor,
SUA CARTA ALCANÇOU-ME APENAS HÁ POUCOS DIAS.
Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não
posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio
a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar
numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em
mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão
tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos
acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca
pisou. Menos suscetíveis de expressão do qualquer outra coisa são as obras de
arte – seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei
ainda que seus versos não tem feição própria, somente acenos discretos e
velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema “Minha
alma”. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema “A
Leopardi”, talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja
apontando. No entanto, as poesias nada tem ainda de próprio e independente, nem
mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as
acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus
versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se seus versos são
bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a
periódicos, compara-os a outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas
são recusadas por um outro redator. Pois bem – usando da licença que me deu
para aconselhá-lo -, peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para
fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode
aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si
mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes
pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se
lhe fosse vedado escrever? Isto, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora
mais tranquila de sua noite: “Sou forçado a escrever?”. Escave dentro de si uma
resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa
por um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com essa
necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá
tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza.
Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e
perde.
Não escreva poesias de amor.
Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais
difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir
algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes.
Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a própria existência
cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos
passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isso com íntima e humilde
sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens
de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência
cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que
não é bastante poeta para extrair suas riquezas. Para o criador, com efeito,
não há pobreza em nenhum lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se
encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de
chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e
régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer
as sensações submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de
reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre
lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar.
Se depois dessa volta para dentro, desse ensimesmar-se, brotarem versos, não
mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará
interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua
querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte
é boa quando nasceu por necessidade. Nesse caráter de origem está o seu
critério – o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar
outro conselho fora este: entrar em si e examinar as profundidades de onde
jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber
se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem
procurar interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a ser um
artista. Nesse caso, aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza,
sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito,
deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que
se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após
essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a
se tornar poeta. (Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem
escrever para não mais ter o direito de fazê-lo.) Mesmo assim, o exame de
consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse
momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o
que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que devo mais lhe dizer?
Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria
apenas sugerir-lhe que se deixasse com discrição e gravidade ao termo de sua
evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de
fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo
possa responder na hora mais silenciosa.
Foi com alegria que encontrei em
sua carta o nome do professor Horaceck; guardo por esse amável sábio uma grande
estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, deste meu
sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.
Restituo-lhe ao mesmo tempo os
versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza
e a cordialidade de sua confiança. Procurarei por meio desta resposta sincera,
feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente
sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a
simpatia,
Rainer Maria Rilke